Já passei da metade do Caminho Primitivo. Cada dia, dezenas de quilômetros. O corpo segue, e a mente flutua. Às vezes se esvazia completamente. Outras, se entulha: pensamentos se atropelam, criam ruído, disputam espaço.
Para aliviar essa turbulência, comecei um pequeno exercício mental: observar a natureza com olhos de estreia, sem julgar se é bonita ou feia, sem comparar, sem nomear. Apenas ver.
Con occhi vergini.
Na filosofia, a beleza é frequentemente definida como aquilo que agrada universalmente, sem interesse ou posse -como Kant escreveu, um juízo estético puro. Mas será que é mesmo possível ver algo sem medir, sem querer classificar, sem puxar para dentro de alguma categoria?
A natureza me mostra que sim, ela não está interessada no que eu penso. Ela simplesmente é.
A montanha, o campo, o vento, o musgo na pedra, tudo segue, independente da minha opinião.
Niente cambia. E talvez seja exatamente aí que mora sua força.
Isso me fez pensar nas pessoas, em como estamos presos numa jaula invisível chamada comparação.
Somos mais ou menos bonitos, mais ou menos bem-sucedidos, mais ou menos espirituais e por aí vai. Mas, como a natureza, as pessoas simplesmente são. E continuarão a ser, mesmo que eu as julgue, mesmo que eu não as compreenda.
La bellezza, quando è pura, non ha bisogno di confronto.
Quando conseguimos ver alguém como único, essencial, sem os filtros da comparação, surge algo raro: presença. Plena, silenciosa, livre da aparência.
No Caminho, é fácil ver isso com clareza.
Os gatos, por exemplo, estão por toda parte. Vêm perto, somem, aparecem em muros ou sombras. Caminham por entre os campos como se fossem donos invisíveis do tempo.
As vacas pastam com uma serenidade quase trágica, esperando o que não sabem, a morte, que virá como rotina.
As ovelhas que nos olham por um instante, talvez buscando carinho, talvez apenas reagindo ao som dos nossos passos. Logo viram de costas. Indifferenti.
E os cães, alguns semi-livres, correm ao nosso lado como se compartilhassem a caminhada. Outros estão presos por correntes curtas, tristes, schiavi, e parecem esperar o nada.
Esses animais e a forma como vivem, resistem, se mostram ou se escondem, dizem muito. Sobre nós também.
Eles não pedem para serem vistos. Não fazem esforço para agradar. Estão ali, como a paisagem viva que atravessamos.
E talvez nos mostrem, sem querer, como é viver fora da performance. Apenas existir e ser visto assim, sem julgamento.
Tudo ensina a mesma coisa, se a gente tiver disposição para escutar:
Non giudicare. Guarda. Respira.
Talvez seja só isso.
A língua invisível do Caminho
O Caminho fala em muitas línguas, mas tem um idioma só: o camines.
Um misto de espanhol, italiano, francês, inglês, português e silêncio. Um dialeto de passos e gestos.
Você entende sem saber como. Fala com lituanos, tchecos, alemães, espanhóis, trocando pão, conselhos, curativos.
O clássico “Buen Camino!” ressoa de mil formas, e às vezes basta um olhar para continuar.
O Caminho dissolve o idioma e cria outro: o da presença. O da partilha.